terça-feira, 23 de março de 2010

Um panfleto ideológico não tão fundamental

Chamou minha atenção o título de um texto em coluna de opinião de um grande portal de notícias paraibano (todos os links estão no final da postagem). Intitulado "Um livro histórico fundamental", o texto de Ipojuca Pontes parecia ser uma leitura instigante, e de fato o foi, mas de uma forma que eu sinceramente não esperava.

O “livro histórico fundamental” em questão trata-se do Ovril (o vocábulo Livro escrito ao contrário – esse era o nome-código do projeto) um panfletário dossiê produzido por uma comissão de militares na segunda metade da década de 1980, sob as ordens do General do exército brasileiro Leônidas Pires Gonçalves. Seus poucos exemplares, produzidos após aproximadamente três anos de levantamentos feitos pelos militares em seus próprios arquivos e documentos secretos, seriam uma resposta ao projeto coordenado pela Arquidiocese de São Paulo e por D. Paulo Evaristo Arns, que deu origem à obra-denúncia intitulada Brasil: Nunca Mais, e tiveram sua publicação vetada pelo mesmo general, já nomeado ministro do Exército do governo Sarney. A lógica seria que sua publicação traria problemas em uma conjuntura onde ocorria o processo de reabertura democrática no país, pois impediria a cicatrização das recentes feridas políticas e sociais. Esta fora a mesma lógica que motivou o advogado, deputado pelo PSB e militante das Ligas Camponesas Francisco Julião, cujo livro Cambão: a face oculta do Brasil, mesmo finalizado em 1968 e publicado em vários países, apenas ano passado (2009) ganhou sua primeira edição nacional.

Deparei-me com uma fonte valiosa de pesquisa histórica a narrar a visão da instituição militar brasileira sobre boa parte do século XX no Brasil, mas nem de longe chego a cometer a imprudência de tratar tal obra, também chamada de As Tentativas de Tomada do Poder ou O Livro Negro do Terrorismo no Brasil, como “uma obra essencial”, como uma das mais importantes e “impressionantes obras nacionais”, nas palavras do próprio Ipojuca Pontes. O texto elogioso prossegue, qualificando o Ovril como: “documento extraordinário a se constituir em leitura obrigatória para quem, de modo abrangente, pretende conhecer a verdadeira história da subversão comunista no Brasil”.

De fato, é um documento histórico relevante aos historiadores que pretendam abordar o período de 21 anos da história brasileira marcado pela Ditadura Militar, pois retrata de que modo a política de segurança nacional enxergava os acontecimentos, os movimentos sociais e instituições da sociedade civil de forma geral. Nele, podemos ver até que ponto a paranóia anticomunista foi utilizada como justificativa para uma “revolução” preventiva, iniciada em 1º de abril de 1964, que visava desarticular os focos militantes de esquerda e demais comunistas “infiltrados” em território tupiniquim, os quais estariam preparando uma guerra revolucionária em solo brasileiro. Mas tal livro, ou melhor, Ovril, não passa disso: uma fonte histórica relevante que traduz o pensamento da instituição que durante duas décadas comandou o Brasil utilizando, para isso, um diversificado aparato de repressão policial e militar, valendo-se de torturas e assassinatos – muitos dos quais até hoje se encontram abafados, envoltos em uma misteriosa cortina de fumaça que ainda paira defronte à vista das famílias de pessoas desaparecidas durante os anos de chumbo.

Ao ler o texto de Ipojuca, imaginei o tremendo problema de se comparar verdadeiras obras das ciências sociais brasileiras com o panfleto militar de mais de 950 folhas datilografadas divididas em dois volumes: reduzir Casa Grande e Senzala, Formação do Brasil Contemporâneo, Raízes do Brasil, Rubro Veio entre outros trabalhos clássicos para a compreensão da história e da sociedade brasileira, ao nível do panfleto ideológico e conservador intitulado Ovril me parece algo impensável e que carece de coerência com o rigor exigido pelas ciências humanas na produção de conhecimento. Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Sergio Buarque de Holanda, os autores das três primeiras obras supracitadas, devem ter se revirado em seus túmulos.

Pois na faculdade de história aprendemos que um trabalho histórico deve sempre buscar a inalcançável imparcialidade, e o pesquisador deve ter compromisso com a verdade – ainda que reconheça que sua produção será mais uma versão, entre tantas, daquilo que ocorreu. Mas o valor de sua contribuição reside na interpretação que poderá dar aos fatos de acordo com os problemas por ele propostos, o que nos ajuda a entender melhor o processo de construção humana. Esse é o comprometimento de um pesquisador preocupado com a verdade e com a viabilidade da construção de um método de análise conseqüente com o objetivo de melhor compreensão da realidade. Nesse sentido, o Ovril não passa no teste, pois, como comprovei com meus próprios olhos, é apenas um panfleto. O Ovril poderia ainda ter algum valor literário ou formal, mas isso não ocorre: sua leitura é seca, concisa e direta, como pode vir a ser a disciplina em tais instituições.

O Ovril também desrespeita os inúmeros sujeitos históricos da época da Ditadura Militar, entre estudantes, camponeses e sindicalistas. Ao alimentar a paranóia anticomunista como forma de justificar as ações dos militares, desde o Golpe de 1964 até o infame AI-5, suas páginas retratam tais sujeitos – em especial os estudantes – como massa de manobra dos PCs (partidos comunistas) da URSS, de Cuba, e da China. Fidel Castro, Mao Tsé-Tung, Che Guevara, Khrushchov e Brejnev parecem ser agentes mais importantes do que os próprios brasileiros e seus movimentos sociais em sua busca pela ampliação da participação política e o acesso a direitos sociais. Se a influência do das idéias socialistas e do comunismo pelo mundo afora é um fato que não pode ser ignorado na história do Breve Século XX, parafraseando o historiador britânico Eric J. Hobsbawm, dentro do contexto da Guerra Fria que cindiu o mundo em dois lados distintos por décadas; tal constatação não pode servir de desculpa para os desavisados ignorarem a atuação e a tomada autônoma de decisões por aqueles que naquela época (e até hoje) buscam concretizar melhorias sociais. Tratar tantos estudantes e camponeses como mera massa de manobra das vanguardas dos "comunistas infiltrados" no Brasil, deixando de lado sua identidade e condição de sujeitos políticos, pode ser percebido como uma cegueira proposital.

Ipojuca foi Secretário Nacional de Cultura do governo de Fernando Collor entre 1990 e 1991; é escritor e autor de alguns filmes (como Os homens do caranguejo, de 1968, e Canudos, de 1976) e peças de teatro, mas infelizmente não conheço sua produção – o que pretendo fazer logo que minha rotina de professor-estudante se acalme e me folgue o tempo corrido. Mas seu texto-panfleto me permitiu conhecer melhor essa versão dos fatos históricos brasileiros através de uma fonte inédita para mim, e por isso eu o agradeço. Mas é impossível não trazer à tona todos os caminhos equivocados aos quais a sua opinião conservadora pode nos conduzir. Sua opinião leva a uma conclusão precisa: o resgate da verdade sobre o passado (que estaria com os militares) para justificar críticas recentes ao chamado “revanchismo político” da esquerda, que sempre aspirou à punição dos torturadores e à democratização das informações ocultadas: da abertura dos arquivos à localização dos corpos de desaparecidos e informações sobre o destino que tiveram.

A aprovação do Programa Nacional de Direitos Humanos me parece ser o estopim que deu origem a tal ode ao conservadorismo de um período obscuro da história brasileira. Bem como a crítica básica e tradicional à atual candidata do PT às eleições presidenciais, pelo fato de ter integrado grupo armado de oposição à Ditadura. Mas esses motivos, independentemente da visão ideológica do estimado leitor, não deveriam determinar uma análise tão equivocada e parcial sobre o passado de nosso país e sobre um Ovril que nada mais é do que um panfleto institucional – que pode se tornar uma fonte histórica importante a depender do trato que o historiador possa dar à mesma.

Assombra-me o nível de conservadorismo do texto, e o fato de quem o produziu tenha ocupado o cargo de Secretário Nacional de Cultura no primeiro governo democraticamente eleito após 1985. Mas pelo menos vivemos em um momento histórico em que existe a possibilidade concreta da troca e da livre exposição de idéias. Com certeza algo que não foi herdado graças à "boa vontade" dos torturadores e censores militares, mas que foi fruto da atuação e das pressões oriundas do povo organizado. Que agradeçamos, nós e o próprio Ipojuca, aos mortos e vítimas do terrorismo de Estado da Ditadura Militar brasileira: eles fizeram valer nossos atuais direitos sociais, políticos e civis.

O texto “Um livro histórico fundamental” pode ser encontrado em:
http://www.wscom.com.br/blog/ipojuca/Um+livro+hist%C3%B3rico+fundamental-35

O “O Livro Negro do Terrorismo no Brasil”, ou Ovril, encontra-se disponível para download em:
http://www.averdadesufocada.com/index.php?option=com_content&task=view&id=737&Itemid=78


Recomendo: use-os com moderação.

Um comentário:

  1. meu camarada, q satisfação conhecer melhor seus dotes literários... o mesmo não pode ser dito sobre ser apresentado ao velho Ipojuca! o texto acabou me aguçando a curiosidade para ler o que este cidadão andou falando por ai! o tal Ovril ser apontado como "um livro fundamental da historiografia brasileira" deve ser tratado como uma pérola, tipo essas que aparecem em redações de vestibular! não me surpreenderia mais se daqui a pouco o José Otávio quisesse entrar no rol dos grandes intértpretes também!
    mas seguindo o raciocínio do próprio Ipojuca que, se apropriou das palavras do Joseph de Maistre(um conservador um pouco mais talentoso): pelos entusiastas e difamadores de um livro, pode-se avalia-lo mais criteriosamente! o que podemos falar a respeito do ilustríssimo Ipojuca Fontes?

    grande abraço meu caro Lício!

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